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Curitiba e o futuro das cidades

por Alessandra Moretti

Cidade modelo, capital humana, capital da qualidade de vida, cidade da gente, capital ecológica, capital tecnológica, cidade das ideias… Um slogan é capaz de definir uma cidade?

Em 1997, a arquiteta e urbanista Fernanda Sánchez chamava atenção para o fenômeno da “cidade-espetáculo1“, referindo-se à relação das estratégias de planejamento urbano com o marketing dos municípios. Segundo a pesquisadora2 (que tomou Curitiba e Barcelona como referências), o acirramento do processo de globalização fez com que cidades do mundo inteiro se tornassem mais competitivas, assimilando modelos empresariais de ação e propaganda para atrair capital privado, mão de obra qualificada, turismo e financiamentos públicos.

Hoje, quando se fala em gestão urbana um dos conceitos em maior evidência é o de smart cities, ou cidades inteligentes.

Imagine-se que, assim como é comum nas residências, uma cidade inteira adote o uso de lâmpadas de LED dimerizáveis e isso passe a gerar, de modo consistente, uma economia da ordem de 40% a 60% para o orçamento público. Ou que toda a infraestrutura urbana seja monitorada por sensores e câmeras em rede, para detectar e resolver problemas pontuais — de um simples bueiro entupido ao controle racional do sistema de tráfego. Que drones possam revelar a existência de terrenos ociosos e passíveis de IPTU progressivo, para o incremento da receita municipal. Ou ainda que, por meio de recursos tecnológicos como wi-fi, qualquer cidadão se conecte à rede urbana para interagir com órgãos públicos e estabelecimentos comerciais…

Entusiastas das smart cities, cujo modelo se baseia em parcerias público-privadas, defendem que a partir da ampla informatização, da coleta de dados e do mapeamento constante dessas informações, prefeituras e secretarias possam dispor de soluções bem mais racionais para a gestão de recursos humanos, financeiros e naturais, seja em tempo real ou com vistas a metas de longo prazo. Sob a perspectiva da otimização urbana, espera-se trazer sustentabilidade e resiliência para as cidades, com foco na qualidade de vida dos cidadãos em todos os estratos sociais.

Desde 2011, Barcelona promove o maior evento do mundo sobre o tema das cidades inteligentes. Curitiba sedia a versão brasileira do encontro, subsidiado pelo município e demais apoiadores. De acordo com Eduardo Marques, sócio-diretor da empresa organizadora, o congresso tem alto impacto para a economia da cidade, pois reúne um grande número de gestores públicos e empresários ligados à área de inovação, traz palestrantes brasileiros e estrangeiros, movimenta o turismo local e alça Curitiba ao posto de polo disseminador da cultura das smart cities no país. Quanto à capacitação de profissionais para esse mercado emergente, outro aspecto crítico apontado por Marques é a necessidade de suprir lacunas na formação de pessoas para lidar com questões específicas à governança, tais como as interfaces entre o poder público e o setor privado, novos instrumentos e tendências de gestão urbana.

A expectativa de crescimento para o setor é surpreendente. Em termos numéricos, até 2025 este mercado deve impulsionar $2.46 trilhões de dólares, segundo pesquisa da consultoria americana Frost & Sullivan.

Embora as perspectivas soem promissoras, nem tudo são flores no horizonte das cidades inteligentes. A exemplo das polêmicas que cercam outras atividades ancoradas em tecnologia, o conceito também é alvo de inúmeros questionamentos que vão desde a segurança dos processos de coleta, circulação e armazenamento de dados, até a tendência de que derivem para uma privatização difusa e gradual dos serviços públicos.

No que diz respeito à conexão entre cidade e cidadãos, críticos também alertam para os eventuais riscos de que a administração pública se converta num ambiente de abstrações algoritmicas, terreno fértil para a falta de transparência. Temem que numa sociedade hiperconectada ao Estado, pessoas sejam alvo de vulnerabilidades técnicas ou de ordem subjetiva como (à sombra de regimes autoritários) uma iminente ameaça às suas liberdades individuais.

De imediato e concreto o que se sabe é que, mesmo sob o respaldo da Lei Geral de Proteção de Dados, o setor de cidades inteligentes ainda carece de regulamentação e fiscalização mais específicas no Brasil.

Entre o furor dos bons prenúncios, o ceticismo dos críticos e o pessimismo das previsões distópicas, é importante discernir entre a retórica do espetáculo e os potenciais benefícios que o novo formato de cidades pode trazer à vida urbana e humana. A proatividade da sociedade civil no sentido de balizar os rumos do mercado é essencial para que novas soluções não sejam desvirtuadas, ou resultem em mais um fator de exclusão social e digital.

Nos últimos anos, a atual gestão municipal vem experimentando com várias iniciativas nessa seara, com o intuito de fomentar o ecossistema de inovação e estimular a interação de startups, academia, investidores e outros atores ligados ao segmento, além de ações que promovam Curitiba como “cidade inteligente”.

Como parte dessa leva de ações promocionais, entre 2018 e 2019 a Alameda Prudente de Moraes foi celebrada como a “primeira rua interativa de Curitiba” e virou palco de uma espécie de cena hype. A proposta foi criar um diálogo virtual entre o comércio e os frequentadores da rua: qualquer passante munido de um celular poderia acessar QR codes dispostos nas fachadas dos estabelecimentos, para ter acesso a cardápios e opções de menu “exclusivas” — um tanto na contramão do propósito de inclusão postulado pelas cidades inteligentes. Por meio da instalação de um aplicativo, o usuário também tinha a opção de ser notificado sobre promoções-surpresa e curiosidades da região. Ao fim de 2020, ano em que o delivery prevaleceu sobre os hábitos presenciais, os comerciantes da área relataram uma sensível queda de interesse pela interatividade. Algumas promoções prescreveram, soube-se que uma placa de QR code foi vandalizada e restaram poucos estabelecimentos com códigos ativos.

No Centro, a requalificação da Voluntários da Pátria, pautada por preceitos das “ruas completas”, consistiu em uma série de intervenções no espaço físico da rua: a primeira foi reduzir a largura da pista destinada aos veículos e elevá-la ao nível das calçadas, que não só ficaram mais largas e convidativas à caminhada, como também mais amigáveis e acessíveis para cadeirantes e pessoas com deficiência.

Todavia, no quesito da mobilidade ativa não se previu uma faixa de tráfego segura para os ciclistas que, sem espaço na estreita via de rolamento, acabam por disputar o petit-pavê com os pedestres. A falta de um bicicletário na rua faz com que os postes e os troncos das árvores sirvam de suporte improvisado a biciletas estacionadas.

A antiga rede de cabos elétricos foi enterrada e a rua ganhou iluminação a LED. Para estimular a permanência de pessoas, foram instalados bancos “antivandalismo”, algo que denota os obstáculos socioculturais que Curitiba tem a transpor: numa relação madura de pertencimento e zelo, o cidadão inteligente não depreda, pois percebe o espaço público como extensão da própria casa.

Finalmente, a fachada do centenário prédio do Instituto de Educação do Paraná foi restaurada e recebeu pintura fiel à original, num ato de resgate histórico que repercute de maneira muito positiva para a paisagem da região.

Às portas de um novo pleito municipal, o mais ambicioso empreendimento em smart cites para Curitiba é o Bairro Novo do Caximba. O projeto avançou em trâmites como a aprovação de leis e de empréstimos para financiá-lo. Segundo dados do IPPUC, o cronograma de realização foi delineado, mas a definição de datas para o início das obras ainda depende do andamento de processos licitatórios.

O bairro inspira-se no bem-sucedido Projeto 22@ de Barcelona e no canadense Quayside Project que, sob pressão das incertezas econômicas impostas pela crise mundial de saúde, foi abortado em maio de 2020. O fato é que o milionário empreendimento da Sidewalk Labs (afiliada ao grupo Google) também enfrentou resistência da comunidade de Toronto, que empreendeu uma verdadeira cruzada contra as pretensões da corporação de intervir numa grande área da cidade.

A depender das variáveis e instabilidades do momento atual, o projeto Bairro Novo do Caximba aspira reassentar famílias em situação de risco que ocupam de forma irregular uma Área de Proteção Ambiental, no extremo sul de Curitiba.

Engajamento da comunidade, capacitação profissional, construção de moradias sociais sustentáveis, recuperação ambiental, medidas de urbanização e desenvolvimento econômico são algumas das promessas anunciadas para o Caximba, cujas obras podem gerar algo em torno de 14 mil empregos, pelas projeções da Prefeitura.

Na teia de demandas e conflitos de que são feitas as metrópoles, o futuro das smart cities é incerto: o compromisso com o bem-estar social tanto poderá se dissipar em discursos voláteis, quanto de fato fazer das cidades verdadeiros epicentros de políticas transformadoras.

Apesar do justo reconhecimento por conquistas nas áreas de inovação e urbanismo, sobretudo entre as décadas de 1970-90, a profusão de prêmios e rankings nos quais Curitiba vem se destacando atualmente é concedida sob a lente de critérios específicos, muito aquém de contemplar a cidade como um organismo vivo, complexo e integral. Outro fator a se observar é que a capital paranaense se sobressai ao ser comparada a outras cidades brasileiras, mas está longe de competir com o índice de desenvolvimento humano de outras da estatura de Estocolmo, Londres, Melbourne ou Singapura.

Quando questionado sobre Curitiba ser ou não uma cidade inteligente, Marques pondera que o potencial é enorme, mas enquanto persistirem a precariedade de infraestrutura e as desigualdades sistêmicas como as que afligem o Brasil, não há lastro para comemorar esse título. Conclui que, mesmo em países desenvolvidos, o caráter dinâmico dos marcadores de desempenho impõe um desafio permanente: “O progresso de cada cidade depende da busca incessante por se tornar mais inteligente que antes, num gradiente infinito de possibilidades”.

Referências Bibliográficas
1SANCHEZ, F., Cidade-espetáculo: política, planejamento e city marketing. Curitiba: Editora Palavra, 1997.

2SANCHEZ, F., Políticas urbanas em renovação: uma leitura crítica dos modelos emergentes. In: ROLNIK, R. (Org.); FERNANDES, A. (Org). In: ______. Cidades. Rio de Janeiro: Funarte, 2016. p. 297-323 (Ensaios brasileiros contemporâneos).

Montagem Capa (imagem de fundo)
“Circuit 209081”, por Philip Givon:  www.unisci24.com/209081-circuit.html

Sites
iCities
http://www.icities.com.br

Smart City Expo Curitiba
http://www.icities.com.br/scecwb/

Smart City Expert:
https://smartcityexpert.myedools.com

Smart Cities World / Pesquisa Frost & Sullivan:
https://www.smartcitiesworld.net/smart-cities-news/smart-cities-news/smart-cities-predicted-to-create-246-trillion-worth-of-business -opportunities-by-2025-5816

MCities/ Ação Al. Prudente de Moraes:
http://www.mcities.com.br/curitiba/imprensa/interatividade-na-prudente-de-moraes/

Places Journal – “Uma cidade não é um computador”, por Shannon Mattern:
http://www.placesjournal.org/article/a-city-is-not-a-computer/?gclid=Cj0KCQjwuL_8BRCXARIsAGiC51CJ0FmDbof6zcpkrvKAxcUpJOfMFXmwqvdh21u1RlbWD-ZI1KEH56AaAs0UEALw_wcB

WRI Brasil – Ruas Completas:
https://wribrasil.org.br/pt/o-que-fazemos/projetos/ruas-completas

Amanhã Online – O que o Projeto Barcelona 22@ nos ensina:
http://conexaocorporativa.com.br/fundacredrs/site/m012/noticia.asp?cd_noticia=62435781

The Verge – Alphabet’s Sidewalk Labs fecha projeto de cidade inteligente de Toronto: https://www.theverge.com/2020/5/7/21250594/alphabet-sidewalk-labs-toronto-quayside-shutting-down

Emerald Insight – Comparativo de cidades inteligentes europeias – um modelo de maturidade e ferramenta de autoavaliação baseada na web:
https://www.emerald.com/insight/content/doi/10.1108/SAMPJ-03-2018-0057/full/html

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