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Biblioteca Pública do Paraná: traço, prédio e entrelinhas

por Alessandra Moretti

“Em meio ao formigueiro humano, disputando espaço com a velocidade de veículos e a sonoridade estridente de uma capital […], há um prédio de linhas modernistas, construído nos anos 1950, rodeado por palmeiras que destoam do ambiente da terra dos pinheirais. Suas portas abertas nos levam a um universo”.

Nilson Monteiro3, jornalista e escritor

No final dos anos 1940, em meio a uma paisagem urbana ainda dominada pela arquitetura eclética, construtoras locais impulsionavam a verticalização do centro da cidade, motivadas pela prosperidade econômica do ciclo cafeeiro e pelas novas diretrizes urbanísticas do Plano Agache. Devido ao fato de que havia poucos arquitetos em Curitiba, a cidade crescia para o alto sem muito critério de estilo, a não ser por bons exemplares art-déco, que já representavam um movimento de ruptura.

Na década seguinte, um decisivo estímulo local ao modernismo arquitetônico viria do setor público: embalado pelo espírito do pós-guerra e como parte de um projeto de cunho desenvolvimentista, o então governador do Estado do Paraná, Bento Munhoz da Rocha Neto, deu início à construção de uma série de edifícios oficiais de caráter moderno. As obras comemorativas do primeiro Centenário da Emancipação Política do Estado visavam estabelecer um marco na transição de uma capital com histórico agrário e ares provincianos para um futuro de vocação industrial e cosmopolita, por meio de uma estética urbana associada à ideia de progresso.

Dentre os frutos dessa fase estão o conjunto arquitetônico do Centro Cívico, a Praça 19 de Dezembro, o novo Teatro Guaíra, o Grupo Escolar Tiradentes e o definitivo prédio da Biblioteca Pública do Paraná.

Embora a história institucional da BPP remontasse ao ano de 1857, ao longo de quase um século de existência seu acervo passara por diversos locais, sempre subordinado às dependências de outros órgãos públicos, como o Liceu de Curitiba, o Museu Paranaense e a Câmara Municipal. Foram 12 mudanças de endereço até que a Biblioteca tivesse uma sede própria, no coração de Curitiba — o edifício da Rua Cândido Lopes, assinado pelo jovem engenheiro civil curitibano Romeu Paulo da Costa.

Biblioteca Pública do Paraná vista da Rua Cândido Lopes. Foto: Armin Henkel, década de 1960.
Face lateral, Rua Dr. Muricy. Foto: Arthur Wischral (s/ data)

O período arquitetônico que vai do final dos anos 1940 ao início dos anos 1950 é tido por pesquisadores como uma fase transicional, mas de rápida assimilação de uma “arquitetura moderna em sua mais pura essência” (PACHECO, 2010, p. 36). Foram anos marcados por “obras pontuais exemplares” projetadas por um grupo de engenheiros civis, entre os quais Romeu Paulo da Costa.

“Neste curto período de tempo, que ocorre em um momento em que se buscava ser moderno, mas sem se saber como, estes engenheiros protagonizariam um importante processo de depuração.” (PACHECO, 2010, p.36)

Até 1962, Curitiba não tinha um curso de Arquitetura, nem mesmo havia na cidade fácil acesso a livros e periódicos sobre o tema. Além de viajarem a estudo para observar in loco a arquitetura emergente de outras capitais, engenheiros autodidatas em arquitetura como Romeu e seu colega Rubens Meister (Teatro Guaíra) acorriam a publicações que garimpavam em bibliotecas técnicas, nas editoras e na Livraria Universitária, da qual eram clientes regulares (COSTA, 2002, p. 130). 
A assinatura de revistas nacionais e importadas era outro meio de acesso ao trabalho de alguns dos profissionais mais eminentes do seu tempo: Frank Lloyd Wright, Walter Gropius, Mies van der Rohe e Le Corbusier. Para a formação de Romeu da Costa também foram decisivas as influências de Ernst Neufert e dos brasileiros Lúcio Costa, Rino Levi, Oswaldo Bratke e Villanova Artigas, com quem chegou a colaborar profissionalmente.

“Arquitetura aprendia-se no dia a dia, ao vivo e fazedo no escritório de arquitetura, estudo era só livro e revistas. Professores não… Nunca tive professores de arquitetura.”

— Romeu Paulo da Costa (COSTA, 2002, Anexos – p. XIX)

Quando a Biblioteca Pública esteve sob a administração do Município, ainda na década de 1940, Romeu da Costa venceu um concurso para dar uma sede à instituição, mas o projeto não saiu do papel. Todavia, sua credibilidade profissional repercutiu e poucos anos mais tarde ele seria escalado pelo coordenador da Comissão Especial de Obras do Centenário, Elato Silva, para elaborar uma nova proposta, desta vez sob os auspícios do Governo do Estado. 

O arquiteto e pesquisador Salvador Gnoato observa que o primeiro desenho apresentado ao governador privilegiava a horizontalidade do edifício, com pés-direitos mais baixos e fachada dominada por brises-soleil (para-sóis).

Estudo inicial da Biblioteca Pública do Paraná, 1951. Perspectiva: Romeu Paulo da Costa. Fonte2Romeu Paulo da Costa: vida e arquitetura (p. 76).

No entanto, após inúmeros diálogos e sugestões de Munhoz da Rocha (que também era engenheiro civil de formação), alguns elementos foram alterados ou preteridos. Por contingências orçamentárias surgidas no decurso das obras, itens como painéis artísticos, revestimentos em mármore e os brises horizontais não foram executados, restando as aletas verticais que contribuem para sombrear as janelas e acentuar o caráter monumental da fachada. 
Ao longo das conversações com o governador, para quem a monumentalidade era uma condição essencial, o corpo do edifício cresceu em altura, mas o monobloco foi matizado por dois volumes de pé-direito menor e com lajes em balanço, nas extremidades laterais da edificação.

Gnoato vê nesses anexos o contraponto moderno ao racionalismo clássico que, segundo a sua percepção, domina o bloco central. Comenta ainda que “a simetria e modulação da estrutura permitem observar que permaneceram, no início do Movimento Moderno, alguns pressupostos projetuais do modelo Beaux Arts […]” (GNOATO, 2009, p. 113). 

Projeto final para a Biblioteca Pública do Paraná (os brises não foram executados). Perspectiva: Romeu Paulo da Costa.

O arquiteto Bruno Metzler Filho chama atenção para o viés funcional tido em conta por Romeu Paulo da Costa, ao conceber a Biblioteca: “Para o desenvolvimento do programa, o autor do projeto buscou assessoramento com especialistas, sendo necessário se deslocar ao Rio de Janeiro para aprofundar seus conhecimentos sobre o assunto” (METZLER Filho, 2000, p.8). Nesse intercâmbio, foi a bibliotecária Lydia de Queiroz Sambaquy quem deu contribuições decisivas para a estrutura organizacional (dividida por assuntos), o mobiliário e os equipamentos do novo prédio. Também por sugestão dela, implementou-se de forma pioneira no Brasil o sistema de livre acesso — uma dinâmica que permite aos usuários buscar os livros por conta própria, como em uma livraria.

A Biblioteca Pública foi edificada em concreto armado, num ritmo de trabalho intenso: concluída num prazo de oito meses, foi a primeira dentre as construções comemorativas do Centenário a ficar pronta, em 1953. No entanto, a cerimônia oficial de inauguração só ocorreria no ano seguinte.

Inauguração da BPP, em 19 de Dezembro de 1954, prestigiada pelo Presidente da República Café Filho.
Acesso em rampas, elemento típico do movimento moderno. Foto: Synval Stocchero (início da década de 1980).

Em sintonia com o seu tempo

A BPP foi tombada pelo Patrimônio Histórico Estadual em dezembro de 2003, como parte das festividades dos 150 anos de emancipação política do Paraná.
Na ocasião, o edifício já havia passado pela primeira grande reforma (1993-1994), sob a gestão da Diretora Valéria Prochmann. Após quarenta anos de atividade, as instalações sofriam os efeitos da depreciação natural, exigindo reparos hidráulicos, elétricos e novos itens de segurança. Além disso, havia premência pela informatização da biblioteca e por uma  ampliação da sua capacidade física, que não mais comportava o crescente volume do acervo. Aventou-se a adição de dois andares, já que o prédio fora tecnicamente concebido com a devida robustez estrutural. Em razão da complexidade de uma obra de tal porte, Romeu e a arquiteta Lauri da Costa (sua filha) optaram por uma saída mais simples: a inserção de mezaninos metálicos removíveis, aproveitando o pé-direito dos pavimentos existentes e respeitando a consagrada volumetria do prédio no contexto da cidade. Com o advento das renovações, os brises modernistas do projeto original voltaram à pauta, mas o próprio autor julgou-os desnecessários, uma vez que os edifícios surgidos no entorno da Biblioteca já cumpriam a função de sombreamento.

Esta sequência de imagens mostra os mezaninos em 2021.

A partir de 2011, novas diretrizes trouxeram mais um ciclo de transformações para a Biblioteca, à época dirigida por Rogério Pereira. O ponto de partida foram reformas externas e estruturais, como a pintura da fachada, a informatização do sistema de consultas e a ampliação das redes lógica e elétrica, que possibilitou implementar a tecnologia wireless nas dependências do prédio histórico. O próximo passo veio em novembro de 2012, quando o arquiteto Manoel Coelho e sua equipe apresentaram o projeto para uma extensa revitalização prevendo melhorias físicas, organizacionais e de mobiliário.

“Para mim, foi muito gratificante realizar este projeto porque fui um frequentador assíduo da Biblioteca Pública do Paraná. Cheguei em Curitiba em 1960. Entrei na primeira turma de Arquitetura da Universidade Federal do Paraná, em 1962. Estou muito orgulhoso de participar dessa revitalização”.

Manoel Coelho8, 2012.

Em um processo que compreendeu três etapas de execução (de 2016 a 2018), merecem destaque a criação de uma ala especial para a Divisão de Obras Raras e as renovações do auditório Paul Garfunkel e da Seção Infantil. Na fachada, a novidade ficou por conta do fechamento das lajes laterais com estruturas envidraçadas, prescindindo-se dos vãos em balanço, em favor de mais espaço de uso interno. 

Finda a reforma, restava ainda a sinalização, que deu novos ares à BPP — além de rejuvenescer a linguagem visual da Biblioteca, o projeto criado pelo estúdio Thapcom ficou entre os finalistas da 13ª Bienal Brasileira do Design Gráfico. 

Para o arquiteto e professor Emerson Vidigal “a transformação do espaço em lugar é o que faz o desenho se tornar arquitetura” (VIDIGAL, 2016, p. 20).

Desde que foi criada, a BPP vem se consolidando não só como referência em pesquisa, consulta de livros e de outros bens culturais, mas como um centro de convivência e de celebração das artes, com uma programação vibrante que inclui música, teatro, cinema, exposições, oficinas, contadores de histórias e encontros com autores. 

Num tempo em que, pouco a pouco, as pessoas se reapropriam dos espaços públicos e das trocas comunitárias, são lugares como a Biblioteca Pública do Paraná que transformam a arquitetura em organismo vivo.

Projeto “Uma noite na Biblioteca” (foto: arquivo BPP/ pré-pandemia)

Agradecimentos

À Biblioteca Pública do Paraná – Direção, Divisões de Difusão Cultural (Omar Godoy), Documentação Paranaense e a todos os funcionários que cooperaram ativamente para a realização deste artigo. Da mesma forma, aos colaboradores: Casa da Memória/ FCC, Bourbon Curitiba Convention Hotel, EMG Advogados, Rosa e Lima Joalheria.

Imagens de Acervos

Casa da Memória (Diretoria do Patrimônio Cultural da Fundação Cultural de Curitiba);
Biblioteca Pública do Paraná (Difusão Cultural e Documentação paranaense)

Fotos atuais (out./nov. 2021)
Alessandra Moretti

Referências Bibliográficas

1GNOATO, Luís Salvador P. Arquitetura do movimento moderno em Curitiba. Curitiba: Travessa dos Editores, 2009. 144 p.: il. (A Capital, 7)

2GNOATO, Luís Salvador P; SUTIL, Marcelo. Romeu Paulo da Costa: vida e arquitetura. Curitiba: Edição dos Autores, 2004. 86 p.: il. (A Capital, 1).

3MONTEIRO, Nilson. Livro aberto: uma história da Biblioteca Pública do Paraná. Curitiba: Biblioteca Pública do Paraná, 2018, 216 p.: il. (Biblioteca Paraná)

4VIDIGAL, Emerson José. Arquitetura – o ofício do arquiteto. Curitiba: Grifo, 2016. 68 p.: il (Projeto a cidade como história: conhecendo e preservando o patrimônio cultural de Curitiba; v. 2)

Trabalhos Acadêmicos

5COSTA, Lauri da. Leitura (in)Fluente. 2002. Dissertação (Mestrado em Arquitetura) – Convênio PROAPAR-UFRGS-PUCPR. https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/1962/000362544.pdf?sequence=1&isAllowed=y . Acesso em 25/11/2021.

6METZLER Filho, Bruno Werner. Biblioteca Pública do Paraná – uma análise da arquitetura. 2000. Monografia (Mestrado em Arquitetura) – Convênio PROAPAR UFRGS – PUCPR. (disponível para consulta presencial na Divisão de Documentação Paranaense – BPP)

7PACHECO, P.C.B. A arquitetura do grupo do Paraná 1957-1980. 2010. Tese (Doutorado em Arquitetura) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Arquitetura. Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura:  https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/31984/000785286.pdf?sequence=1&isAllowed=y . Acesso em 25/11/2021.

Links (Acessos em 25/11/2021)

8Biblioteca apresenta projeto para reforma do prédio histórico: https://www.bpp.pr.gov.br/Noticia/BPP-apresenta-projeto-para-reforma-do-predio-historico

9Biblioteca Pública do Paraná: https://www.bpp.pr.gov.br

10Nova Sinalização visual da Biblioteca Pública do Paraná: https://thapcom.com/trabalhos/nova-sinalizacao-da-biblioteca-publica-do-parana/ 

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