O texto a seguir faz parte do projeto “Vasto Chão” e foi produzido a quatro mãos por Beatriz Teixeira e Brenda Pontes. As fotos são de autoria de Brenda Pontes.
Em sua primeira definição, o chão é apresentado como “superfície de qualquer natureza que pode ser pisada pelos seres vivos e que serve de apoio para coisas e objetos”. Quando analisamos a cidade através da mesma ótica, o chão assume a entidade comum que toca diferentes elementos, a face conectora da complexidade urbana. Popularmente, esse substantivo é encontrado em expressões que indicam posses com vínculos afetivos como no caso de “meu pedaço de chão”, ou até mensurando distâncias de maneira subjetiva e mesmo assim confiável, com o alerta: “até lá tem muito chão”. Suas múltiplas interpretações possibilitam uma investigação entre os diferentes elementos, intenções e memórias de um território. Através deste exercício, o presente texto é o marco inicial de um conjunto de reflexões das autoras a respeito do vasto chão de Curitiba.
No glossário das edificações, o térreo é o pavimento que se situa ao rés do chão. Seu papel é desempenhar uma conexão com a cidade, a margem entre o interior e o exterior, elementos de circulação e outros espaços propícios para acontecimentos coletivos. Na arquitetura, por vezes, essa margem possui delimitações mais explícitas. Mas foi o movimento modernista que ampliou tal debate, não considerando limites entre edifício e cidade ao introduzir o conceito de térreo livre.
A partir desta percepção a respeito da dissolução de fronteiras, cabe destacar o conceito de Montaner e Muxi (2014, p.14) sobre a estreita relação entre cidade e política pela derivação da palavra grega polis, ou seja, a cidade como um agrupamento de cidadãos livres que se organizam para interagir no mundo. Se o espaço político é o espaço partilhado no qual todos estamos envolvidos, seria o térreo onde todos esses conceitos se encontram?
Para entender essa relação entre espaço público-político com o térreo, portanto, o presente ensaio se aproxima de três exemplos de projetos públicos curitibanos, que se diferenciam por suas escalas e funções urbanas, mas são marcados pela extensão do térreo com a rua – ou o chão.
A despeito dos conceitos colocados, há no imaginário coletivo e modernista da representação do térreo como espaço público um grande espaço de livre acesso e autonomia. Em Curitiba, o pavilhão que configura o vão livre do Edifício Humberto Castelo Branco, hoje Museu Oscar Niemeyer, pode ser a máxima representação deste conceito.
O pavilhão foi projetado por Niemeyer em 1967 para ser o Instituto de Educação do Paraná, e acabou abrigando secretarias do Estado por motivos políticos. O bloco horizontal de grandes dimensões (205 por 45 metros) foi executado sobre o nível de pilotis do térreo praticamente livre formando um maciço de quatro vigas longitudinais de concreto, que possibilitam a percepção do paralelepípedo flutuar. Abaixo dele não há definição rígida de fluxo ou uso, o único elemento que setoriza fisicamente o espaço é o bloco central do anfiteatro, além da presença de longos bancos lineares nas bordas, rampas de acesso e dois acessos ao interior do edifício: de uma extremidade, o café e bilheteria, da outra, a entrada para o museu.
A flexibilidade de uso projetada sempre apresentou uma vocação para se tornar um espaço de exposições que ressignificou o vazio em 2001, com a atualização do projeto pelo mesmo arquiteto para o novo museu, quando fora anexado o volume do “olho” na porção frontal. Interessante perceber que a forte presença do lugar estimula o equipamento de lazer e cultura da cidade a se manter atual. Localiza-se no Centro Cívico, em um ponto de transição entre a escala monumental dos edifícios públicos e uma zona residencial, e acolhe seu entorno. O bosque emoldurado pelo edifício, o gramado, e os múltiplos acessos livres renovam o senso de apropriação urbana através do tempo. E talvez, mesmo que o anexo realizado em 2002 carregue o símbolo do Museu Oscar Niemeyer, o triunfo de possuir um chão tão conectado e vivo cabe ao edifício flutuante da década de 60. O grande bloco de concreto paradoxalmente é leve, suspenso, livre e atravessável, unindo essas áreas em um só chão.
Projetada em 1969 por Rubens Meister, e construída em 1972, a Estação Rodoferroviária de Curitiba obedecia os critérios para a implantação dos terminais rodoviários estabelecidos pelo Departamento Nacional de Estradas de Rodagem dos anos 1970 (SEGAWA, 1998). O projeto é composto por pórticos modulares de concreto armado aparente moldado in loco que suportam um sistema de cobertura em lajes pré-fabricadas. O sistema configura uma grande cobertura independente do térreo que habitava no imaginário das estações rodoviárias modernistas: a arquitetura como grande praça coberta (PEREIRA, 2020). Havia não apenas a necessidade de planejar e ordenar o tráfego intermunicipal e interestadual, mas também concentrar em um único local pontos de interesse comerciais e de lazer.
Situa-se em um terreno de 75 mil m2 na saída natural para três das principais rodovias da cidade, e próxima ao centro em frente a uma via estrutural, com fácil acesso ao transporte público. Os acessos de ônibus acontecem pelas ruas internas da estação, de modo em que fica desimpedida a relação direta com a cidade em ambos os lados, tanto no terminal estadual quanto no interestadual (cada qual com 185 metros de extensão). A mesma situação acontecia com o antigo terminal rodoferroviário de 345 metros de comprimento, atualmente desativado, e que hoje ocupa usos administrativos e institucionais. A ligação entre eles é livre, feita por passarelas sobre o fluxo de ônibus. Nos anos 1990 a passarela recebeu uma intervenção de atualização, onde foi necessário mais altura sobre a circulação viária.
O projeto da rodoviária resulta em um chão independente da sua cobertura, que respeita seu programa, escala e entorno. Ainda que seja necessário segregar os fluxos e usos por segurança e funcionalidade, ainda existe muito chão para o acaso. O símbolo do espaço livre também se preserva nessa cobertura, por ser conectado com o tecido urbano, atravessável, coberta e aberta. A união dos usos comerciais e mobilidade nos anos 1970 ainda era novidade. Atualmente, tal decisão não é mais considerada inédita, visto que o uso misto em equipamentos públicos é bastante difundido. A solução se provou eficiente com vocação para agregar público e prover segurança através de um espaço mais movimentado.
Foto: Brenda Pontes Foto: Brenda Pontes Foto: Brenda Pontes Foto: Brenda Pontes Foto: Brenda Pontes Foto: Brenda Pontes
Por definição, as CEASAS podem ser consideradas locais de encontro. Pensada como um modelo replicável, a unidade de Curitiba, situada no Tatuquara, é a quarta implantada pelo Plano Decenal de Desenvolvimento Econômico e Social que buscava melhorias nos métodos de comercialização da agricultura. Implantada em um local de fácil acesso às rodovias, o térreo possui o principal significado da construção.
Os uruguaios Eladio Dieste e Eugênio Montañez foram os autores do projeto, e do sistema construtivo em cerâmica armada também adotado nas outras unidades. O conjunto é composto por três pavilhões de aproximadamente 160 x 38 metros cobertos por 39 abóbadas de 4 metros de vão livre, onde transitam aproximadamente 20 mil pessoas diariamente (SUZUKI, 2019). A cobertura abriga boxes temáticos subdivididos na longitudinal. A larga marquise e corredores internos, no entanto, permitem o movimento constante de usuários com locais pontuais de permanência, como alimentação e serviços. Os pavilhões são elevados da via, funcionando integralmente como uma doca, o que segrega os fluxos de veículos com os de pedestres através de níveis.
A CEASA de Curitiba foi a última unidade em que foi empregado o sistema de cerâmica armada para o Ministério da Agricultura. Há muito espaço para discutir as falhas de implantação da técnica e a ausência de manutenção da cobertura, porém, mais do que isso, as abóbadas de cerâmica armada proporcionam uma introdução a sistemas estruturais não industrializados que cobrem produtos originados do próprio solo brasileiro. Com muito mais identidade que qualquer cobertura tradicional pré-fabricada, o barro que cobre o chão desse projeto sustenta um ecossistema próprio, que por sua vez, abastece Curitiba.
Foto: Brenda Pontes Foto: Brenda Pontes Foto: Brenda Pontes
Foto: Brenda Pontes Foto: Brenda Pontes
O vão livre do Museu Oscar Niemeyer, os corredores da Rodoviária, e a cobertura do Ceasa, falam de uma arquitetura que, entre suas virtudes, pauta-se pela abertura ao indeterminado, ao partilhado. É fato que são todos exemplos de projetos de um mesmo contexto histórico mas que desenvolveram de forma exemplar diferentes hipóteses de conexões com a cidade, elementos de circulação e propícios encontros e acontecimentos coletivos, sejam eles programados ou não. Cabe ainda colocar como suas arquiteturas se mantiveram coerentes com suas funções através do tempo. Operando cada qual de sua forma, e cada qual com seus ajustes necessários, continuaram a articular o espaço comum sem construir barreiras sobre o chão compartilhado.
Fontes:
PEREIRA, Diogo Augusto Mondini. O imaginário das estações rodoviárias modernistas nas décadas de 1960, 1970 e 1980. Arquitetura como grande praça coberta. Arquitextos, São Paulo, ano 21, n. 243.07, Vitruvius, ago. 2020 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/21.243/7838>.
DUDEQUE, Marco Cezar. O lugar na obra de Oscar Niemeyer. Tese de Doutorado. São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo. 2009, p.165-170.
SUZUKI, Juliana Harumi. Tijolo com Tijolo num desenho lógico: as Ceasa e os pavilhões de Dieste e Montañez no Brasil. In: 13° seminário Docomomo: Arquitetura moderna Brasileira. Anais do 13° Docomomo Brasil. Salvador: UFBA, 2019.
NOBRE, Ana Luiza. O chão como projeto. In: LEPIK, Andres; TALESNIK, Daniel (Org.). Access for All. Zurich, 2019, p. 211-213.