Na rápida dinâmica do cotidiano dos habitantes de uma grande cidade, se passa despercebido o diálogo existente entre urbano e transeunte. A falta de tempo e atenção para enxergar o entorno, faz com que a arte, assim como todo o restante, se torne invisível. As preocupações que regem o dia a dia e o foco do percurso de cada indivíduo, por muitas vezes, o impedem de dirigir o olhar às diversas manifestações artísticas que permeiam a cidade, sejam elas, grafites, ou até mesmo, pequenas intervenções, como frases e imagens coladas em uma lixeira.
Ao mesmo tempo, esta cidade está sendo plano de fundo para que haja a construção de lugares simbólicos, que agem como oposição ao grande processo de massificação e racionalização da metrópole, onde grupos se unem de forma a ocupar os espaços com propostas diferenciadas, sendo uma delas a manifestação através da arte pública.
O grafite como manifesto e protesto, desperta ainda o anseio de tornar a arte acessível à toda população, que não frequenta os locais de encontro com foco em consumo, como shoppings e galerias. Faz-se necessário expor a cultura transmitida por uma manifestação artística a todas as classes sociais, principalmente àquelas que não possuem contato facilitado à arte.
A arte de rua é um manifesto do rompimento às práticas consumistas e capitalistas da arte e protagonista da possibilidade de ressignificar um espaço, sendo de forma crítica e/ou lúdica, isto, se pode compreender melhor na publicação anterior. Sendo assim, cabe ressaltar que esta ressignificação ocorre por compreender que as ruas e o lugar público são palcos de lutas, experiências e reconhecimentos, e ainda agem como fator de confronto entre diversas desigualdades, as quais devem ser evidenciadas e todos os grupos sociais devem criar a sua história de forma a ocupar a cidade.
Este confronto é uma maneira de expor e evidenciar uma desigualdade que é presente, mas que, de forma alguma, é imutável, e as manifestações de rua e a arte pública demonstram que o tempo materializado no espaço é constituído pela história das sociedades que o compõe, e está, constantemente, em processo de transformação, sendo um movimento dinâmico e autoconsciente, que busca sempre evidenciar os conflitos e não esconder a diferença, mostrando a riqueza e o valor de uma arte autêntica, original e que tem muito a dizer sobre o mundo. A cidade é o produto de toda uma história que se cristaliza e se manifesta, de modo que o espaço urbano se torna palco para arte e a arte se torna parte dele.
Sendo assim, o espaço urbano como produto de toda a história, deve ser um ambiente onde cada um dos componentes seja evidenciado. A ocupação através da arte tem que ser realizada por indivíduos e/ou grupos, os quais possam exprimir o sentimento de pertencimento e a representação de um povo. No entanto, a cidade de Curitiba demonstra um apreço em ser nomeada como a capital europeia, nesse processo de romantização da formação do estado do Paraná como um todo, através da miscigenação do heroico português e do indígena, o africano foi esquecido. Além disso, há o processo proposital de branqueamento da população através da colonização europeia em todo o país, buscando eliminar de forma genética as características da população negra.
Este esquecimento ainda perpetua através do racismo estrutural causado pela não valorização e não reconhecimento do povo africano como um dos principais edificadores de Curitiba, sendo o Paraná o estado mais negro do sul do país. Na literatura, a história do Estado foi registrada por Romário Martins em 1899, onde se consolidou uma narrativa histórica na qual a presença dos imigrantes europeus se destacava como elemento distintivo da identidade paranaense, no entanto, essa negação não permaneceu apenas nos registros literários, se transpôs também para o espaço público através da arte, em que novamente não há uma menção sequer a escravidão ou a presença de africanos e seus descendentes na história local.
Desta forma, pode-se então observar diariamente o impacto da imigração europeia na arquitetura, na arte, na cultura, nas tradições, na culinária e na literatura. É neste ambiente que o grafite atua como uma arte democrática e representativa, a arte de rua possibilita escancarar diversas pautas sociais e pode ser usada como instrumento para promover visibilidade a população afro curitibana. É a possibilidade de um palco de luta.
Como, o grande mural de Rimon Guimarães localizado na lateral da Casa Hoffmann no Largo da Ordem. O artista curitibano possui claras referências não eurocêntricas, sua obra atual aproxima referências urbanas contemporâneas a elementos da estética africana, como padrões geométricos, cores contrastantes e figuração negra. Seus grafites podem ser encontrados com frequência em diversos pontos do centro da cidade.
Esta ocupação realizada por estes indivíduos ou comunidade, possibilita que haja, além do sentimento de pertencimento, a criação da tentativa de uma sociedade mais igualitária quanto às representações de um povo, em que todos podem ser vistos. As atividades artísticas e culturais com impacto na cidade promovem uma relação de proximidade de grupos sociais, étnicos e raciais distintos.
Fontes:
ARGAN, G.C. História da Arte como História da Cidade. São Paulo; Martins Fontes, 2005.
FELIPE, Delton Aparecido. A presença negra na história do Paraná: pelo direito à memória. In: BLEY, Regina Bergamaschi; RAGGIO, Ana Zaiczuk; TRAUCZYNSKI, Silvia Cristina (org.). Abordagem histórica sobre a população negra no Estado do Paraná. Curitiba: SEJU.
LOPES, Ana Catarina Pinto de Souza da Cruz. O papel da arte na reabilitação urbana: uma análise comparativa. Faculdade de Ciências e Tecnologia Universidade Nova de Lisboa, 2014.
MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Escravidão, africanos e afrodescendentes na “cidade mais europeia do Brasil”: identidade, memória e história pública in Tempos Históricos, volume 20, 2016.
Fotografias: Mayalison Rodrigues