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Boca Maldita: A confraria machista da década de 50

por Amanda Mendes

A Boca Maldita foi uma confraria organizada por um grupo de homens que se reuniam na antiga Avenida João Pessoa, atual Avenida Luiz Xavier, no centro de Curitiba, para conversar e trocar ideias a respeito do desenvolvimento da cidade e do cenário político nacional. No ano de 1956 este grupo decidiu realizar um jantar de confraternização no Grande Hotel Moderno, a partir desta data, 13 de dezembro, o grupo resolveu tornar-se uma sociedade, a qual era registrada como Sociedade Civil de Direito Privado. Todos os anos, na mesma data, realizou-se este jantar com todos os nominados Cavalheiros da Boca Maldita.

A organização se intitulava como uma das mais livres instituições existentes no país, não sendo apenas um local para encontros, mas também um local que agregava o melhor centro de informações nacional. Ainda se posicionavam como uma instituição democrática pluralista e dedicada às causas e interesses da maioria às reinvindicações das minorias. Cabe se atentar para esta auto declaração, para que se questione a veracidade da dita democracia.

Desta forma, a questão que ainda permanece seria a razão para adotar este nome incomum, Boca Maldita. No entanto, seguindo os posicionamentos expostos a respeito da confraria, pode-se imaginar que a nomenclatura deriva-se dos atos e conversas geradas pelo grupo de homens, em seu jantar de confraternização e nos encontros diários no pequeno trecho da XV de Novembro. Em que estes, declaravam suas opiniões quanto a cidade e quanto a política do país, tanto que o tema da organização era:

“Pode ser gente do bem, pode ser,
pode ser gente boa.
Na BOCA não tem pode ser, não
pois a BOCA não perdoa.
A BOCA falou, seu doutor,
tá falado, sim senhor.
A BOCA pichou, seu doutor,
tá pichado.”

 Durante toda a existência da confraria, diversas explicações para este nome foram explicitadas. O presidente vitalício, Anfrísio Siqueira, uma vez expôs que: “A expressão Boca Maldita não significa que seus integrantes sejam pessoas malquerentes; ao contrário, foram justamente os inimigos da liberdade de expressão que procuraram torpedear a instituição Boca Maldita. Justamente por ela maldizer a ignorância, as trevas e violência.”

Apesar disto, o presidente em uma entrevista ao Jornal Indústria e Comércio (1994), quando questionado “E por que Boca Maldita?”, respondeu, utilizando uma conversa com um dos cavalheiros, que: “Quando resolvemos dar um nome para a nossa confraria, o Adherbal Fortes de Sá observou que as mulheres evitavam passar naquele trecho da Boca Maldita, onde havia muitos homens e alguns mexiam com elas. ‘Nós somos malditos’, disse o Adherbal, porque as moças não passavam por lá. Aí o nome pegou, virou Boca Maldita.”      

É desta forma que a Boca se denominava: Maldita, porque assediavam as mulheres, malditos, porque eram declaradamente machistas e isto ainda acabou sendo propagado de forma visual, quando em 1993 durante o mandato do atual prefeito Rafael Greca, foi colocada uma placa em frente ao antigo Café da Boca, em que expunha outro tema deste grupo: “Não ouço, não falo, não vejo”, que se tornou na realidade “Não ouço as mulheres, não falo com as mulheres, não quero vê-las aqui”.
Fonte: Jornal Labora

A confraria que se dizia liberal, democrática e defensora das minorias, excluía as mulheres da possibilidade de participar de qualquer debate político e/ou social existente na Boca. A Curitiba da década de 50, assim como o restante do país via as mulheres como coadjuvantes, no entanto, a instituição permaneceu até meados dos anos 2000 e seu posicionamento ainda era o mesmo. Estes homens eram constantemente questionados sobre a participação feminina, algumas das respostas dos cavalheiros eram:

“Sempre convidamos políticos, profissionais liberais, empresários, pessoas que se destacaram para receber o título. Mulher não entra, porque não tem clima.”
Anfrísio Siqueira

“Agora, uma coisa é preciso que se diga: não participam da ‘BocaMaldita’ as mulheres. Não se trata de discriminação. É que todas elas são preservadas dos debates e os homens, longe do machismo, querem admirá-las e exaltá-las sem que precisem sofrer desgaste.”
Osmann de Oliveira

“Acredito que não seja ambiente propício para a mulher, ela se sentiria constrangida face a determinados assuntos.”
Chaim L. Boiko

“Não existe discriminação. A mulher curitibana, entretanto, é ainda muito preconceituosa e não tem suficiente segurança para frequentar lugares públicos, sem um motivo determinado. As mulheres conversam em casa, nas salas de espera de dentistas, médicos, advogados nas escolas, nos clubes, etc, mas ainda têm certo receio de frequentar cafés e naturalmente a Boca. O tradicionalismo é a nossa marca.”
Chaim L. Boiko

“É vedada a entrada da mulher, pois são tratados assuntos mais de âmbito masculino, inclusive, sobre feministas.”
Mário Celso Puglielli Cunha

O que ainda se cabe analisar neste contexto é a tentativa das mulheres em serem ouvidas, um grupo de mulheres criou a Boca Rouge, em que seu lema era, se não nos ouvir a boca ruge, no sentido de rugir de leão e também como referência ao batom vermelho rouge, utilizado naquela época. A nova confraria não obteve tanto sucesso quanto a formada pelos homens, com a falta de apoio e a falta de receptividade social.

Em uma abordagem e recorte racial, pode-se pensar que estas mulheres, brancas, ainda tiveram acesso a oportunidade da criação de uma confraria própria para que suas necessidades fossem atendidas, no entanto se analisado onde as outras mulheres, pretas, estavam muito provavelmente em trabalhos domésticos e/ou marginalizados, este acesso era ainda mais limitado e ainda é, a luta feminista não inicia no mesmo patamar para todas.

A discussão racial em uma cidade como disse Boiko, “o tradicionalismo é a nossa marca”, é constante e necessária em um tradicionalismo que é higienista, machista e racista. Transmite o processo de embranquecimento e invisibilidade de um povo o qual não era padrão e europeu. Ao decorrer dos anos, a Boca ainda se mostra, além de machista, um reduto racista, mais uma problemática a ser abordada com outros eventos ocorridos na “capital modelo”.

Fonte:
TEMPSKI, Cesar Antonio Mendes Von. TEMPSKI, João Carlos Mendes. Cavalheiros da Boca Maldita. Curitiba. 1994

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