No contexto contemporâneo das grandes cidades, a dinâmica de deslocamento constante dos habitantes é, entre outros fatores, uma consequência da Revolução Industrial, em que o planejamento urbano modernista repartiu as metrópoles em setores, sendo eles: a área de produção, vestiário, descanso e administração. Com esta setorização, fez-se a divisão dos locais, que seriam frequentados por todos, gerando assim a grande necessidade de, muitas vezes, se locomover de forma a atravessar toda a cidade, como resultado, essa coincidência de locomoção acaba por congestionar o espaço.
Essa separação é a base da estrutura interna da cidade capitalista, que influencia principalmente no trajeto diário das classes sociais menos favorecidas, que permanecem durante muitas horas em seu deslocamento, pois seus locais de moradia encontram-se nas periferias das grandes cidades e seus trabalhos localizam-se geralmente nas áreas centrais. Através da formação de suas áreas industriais, comerciais e residenciais e com a expulsão dos trabalhadores para a periferia das cidades, aquela separação virá a ser uma das causas de uma das maiores torturas a que eles ficaram submetidos nas metrópoles do Terceiro Mundo: a ida e volta do trabalho. Este deslocamento por muitas vezes é realizado pelo transporte público de massa, o qual não possui a mesma valorização que os automóveis individuais, sendo estes os que recebem maior atenção do planejamento do traçado urbano. O ideal seria que fosse possível trabalhar, comer e morar em locais razoavelmente próximos.
Sendo assim, essas metrópoles setorizadas entraram em uma grande crise urbana, uma das soluções propostas pelo poder público é desenvolver o sistema viário de forma a otimizar o tempo de deslocamento. Segundo a Carta de Atenas (1933), “os veículos em trânsito não deveriam ser submetidos ao regime de paradas obrigatórias a cada cruzamento, que torna inutilmente lento seu percurso. Mudanças de nível, em cada via transversal, são o melhor meio de assegurar-lhes uma marcha contínua”. Esta valorização dos automóveis individuais, gera como consequência grandes construções como elevados e viadutos. Estes têm por função cruzar pistas de diferentes níveis sem interromper o fluxo do tráfego de veículos, entretanto, é perceptível em diversas estruturas como estas, grandes espaços vazios que se tornam sobrantes em baixo das construções, locais que não possuem clareza quanto à sua utilidade.
Esta tipologia de localidade é nomeada por diversos teóricos como sendo um vazio urbano, um não lugar, uma não cidade e um terrain vague. A formação do não lugar pode ser considerada um acontecimento urbano contemporâneo, sendo identificado como um espaço onde a ausência predomina. Esta ocorrência é nomeada por diversos termos, no entanto sempre representa o mesmo sentimento: de não possuir identidade. O arquiteto espanhol, Ignasi de Solà-Morales, nomeia o não lugar como terrain vague, sendo o terrain um solo urbano com limites definidos ou não, que apresenta a possibilidade de ser edificável e ainda possui grande potencial de aproveitamento; e o vague possui um sentido de libertação de alguma atividade e/ou função, sendo vago e vazio.
Outra denominação muito utilizada para se referir a esses espaços, é o termo vazio urbano, com a mesma representatividade do termo exposto anteriormente, esta nomenclatura ainda permite algumas divisões que cabem ser tratadas nesta análise do contexto urbano. Sendo assim, existem os vazios geográficos, que são aqueles decorrentes de formação e/ou deformação topográfica que consideram diversos fatores naturais, como rios, vales e colinas. Estes fatores influenciam diretamente na concepção urbanística de uma cidade, pois representam uma quebra do estado de construção existente e permite que a fauna e flora se perpetue por esse ambiente, podendo ainda, obter uma interação com os habitantes do entorno, apesar da inexistência de atividade urbana; o vazio fenomenológico também não possui interação com o desenvolvimento urbano, pois são derivados de catástrofes naturais, que modificam a cidade, a destruindo a partir desses eventos individuais, sendo assim o vazio torna-se uma consequência do contexto deste evento ocorrido e por último há a formação do vazio funcional, que pode classificar de forma mais precisa o espaço vago derivado do desenvolvimento do sistema viário.
Este local sobrante é caracterizado por ser consequência de um processo industrial, onde as edificações que comportavam as indústrias durante a década de 90 abandonam o centro das grandes cidades e partem para as áreas periféricas, por conseguinte, essas construções tornam-se grandes elefantes brancos no contexto da metrópole e ainda, sem utilização acabam por ser marginalizadas. Pode-se estender esta definição ao caso dos viadutos e elevados, que como citado, são derivados de um sistema de modernização que não previu o planejamento destas localidades sobrantes.
Os três desmembramentos de vazios representam de forma distinta, uma ausência da vivência humana, que pode tornar este local uma sobra sem identidade. É necessário que um lugar seja considerado antropológico, ou seja, que seja ocupado por pessoas, se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico definirá um não lugar. A hipótese aqui defendida é a de que a super modernidade é produtora de não lugares, isto é, de espaços que não são em si lugares antropológicos. É de grande importância que estes espaços sejam acolhidos pelos habitantes que caminham e vivem a cidade em sua escala. A falta de caracterização de um vazio urbano o torna não simbólico.
Vê-se bem que por não lugar designa-se duas realidades complementares, porém, distintas: espaços constituídos em relação a certos fins e a relação que os indivíduos mantêm com esses espaços, se não há a esta relação e nem a destinação de um fim, ocorre como resultado do não lugar, uma tensão solitária, tornando esse espaço inseguro, devido à falta de atração sentida pela comunidade em transitar neste local, causada pelo não reconhecimento da sua condição humana e a percepção de que esse espaço não foi planejado de forma antropológica. A permanência de pessoas e a espontaneidade em frequentar este local por parte delas é o que fornece a paz, pois a segurança pública é também mantida pelos comportamentos existentes entre o povo. Sendo assim, é necessário que haja o deslocamento e a permanência dos habitantes sobre este lugar, pois é a acessibilidade que torna a terra como espaço urbano, a um contexto urbano e a um conjunto de atividades urbanas.
Os espaços públicos localizados nos baixos dos viadutos, além de serem visualizados como vazios, são frequentemente estigmatizados como paradigmas da degradação urbana. Segundo a Nota Técnica sobre baixos de viadutos realizada pelo Núcleo de Análise Urbana da Prefeitura de São Paulo, isso se deve ao fato da ocupação praticada por alguns grupos de indivíduos, que realizam atividades marginais, lícitas ou não, cabe ressaltar que a condição de marginalidade é vista de forma preconceituosa pela sociedade, uma vez que a relaciona apenas com práticas ilícitas, no entanto, estar à margem da sociedade significa não conseguir acessar seus direitos, não representando que as ações praticadas por esses indivíduos sejam ilegais. E ainda, pela incerteza da qualidade ocupacional que aquela localidade oferece, tendo em vista o seu entorno e atividades paralelas que ocorrem em sua região.
Todas estas incertezas são derivadas da sensação de não pertencimento que os vazios urbanos proporcionam, além do espaço residual, diversos fatores classificam esse lugar de forma a compreender a dificuldade de inserir este vazio novamente no contexto da cidade. Ainda, segundo a Nota Técnica do Núcleo de Análise Urbana, os espaços públicos sob pontes e viadutos possuem características específicas quanto a sua inserção urbana de difícil enfrentamento, seja pelo caráter de espaço de passagem, pelo seccionamento de fluxos de pedestres, pela dificuldade do convívio das atividades do entorno com o fluxo intenso e ruidoso de veículos sobre as estruturas elevadas, pela existência de espaços residuais de baixa altura e pouca iluminação natural, representando um desafio para a gestão eficiente destas áreas.
Percebe-se através da análise desta nota, que este difícil enfrentamento em ocupar e requalificar o espaço público deve-se ao fato do protagonismo dos veículos automotores individuais, e de como as pessoas exercem o papel de coadjuvantes, não possuindo sequer, por muitas vezes, a possibilidade de transitar nas proximidades ou, até mesmo, sob essa estrutura. Sendo assim, não existirá por parte da comunidade o sentimento de pertencimento. Outra condicionante que influência os baixos dessas construções elevadas é a questão de escala e dimensionamento. Independentemente das alturas existentes sob estas estruturas e da dimensão dos espaços que acabam por serem residuais, há um evidente conflito de escalas proporcionado por todo este contexto. O sistema urbano, que é definido por diversas proporcionalidades e construções de épocas diferentes, causa uma desordem na imagem vista da cidade e da relação dos passantes da região com estes espaços consolidados. Percebe-se que para dar resposta a este conflito de escalas, é necessário humanizar a cidade através de uma unidade de intervenção, a criação de um setor humano, de forma a que os habitantes se mantenham como controladores do espaço urbano. Os vazios urbanos embaixo de viadutos possuem grandes potencialidades de ocupação devido à alta taxa de permeabilidade comum nas regiões centrais e por obter uma cobertura que assegura aos indivíduos, proteção quanto às ações do clima. Acredita-se que para solucionar esta cicatriz causada pelo viaduto, é necessário requalificar o baixo deste e o espaço em seu entorno, de forma a consolidar o espaço fragmentado e relacionar com o meio urbano.
Fontes:
AUGÉ, Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade trad. Maria Lúcia Pereira. Campinas: Papirus, 1994.
ÁVILA, João Filipe Nunes. O espaço sobrante: o caso dos viadutos. 2013
CARTA DE ATENAS. Atenas: Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, 1933.
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades trad. Carlos Mendes Rosa. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
NOTA TÉCNICA BAIXOS DE VIADUTOS. Núcleo de Análise Urbana. São Paulo, 2016.
VALENTE, João. Elevados, pontes e metrópoles, e a teoria de uma nova cidade. In: CARUSO, Raimundo C. O automóvel: o planejamento urbano e a crise das cidades. Florianópolis: Officio, 2010.
VILLAÇA, Flávio. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel/Fapesp/Lincoln Institute, 2001.